15/10/2025 06h05
Foto: Divulgação
Após 5 anos de idas e vindas, e incidentalmente às vésperas e já no clima da COP-30, na última semana (2/OUT) a Ferrogrão-FG começou a ser discutida pelo Plenário do STF - como, aliás, todos os processos que chegam ao Tribunal, estrategicamente importantes para o futuro do País, da Nação, deveriam sê-lo!
Essa é a manchete; mas a lits, o processo é mais complexo: a rigor, o que está pautado, e em julgamento, não é diretamente a implantação da ferrovia; mas sim a constitucionalidade da Lei 13.452/17 que alterou os limites do Parque Nacional do Jamanxim. As discussões dos limites do Parque e da implantação da FG se mesclam porque dos 933 km desta, entre Sinop-MT e Miritituba-PA, 49 km (5,3%) estão projetados paralelos à diretriz da BR-163 (já existente) que, por sua vez, tem diretriz mais ou menos paralela e próxima ao Parque.
No primeiro dia de julgamento o relator, Min. Alexandre de Moraes, apresentou seu relatório: um sumário da tramitação da ADI nº 6.553, desde 2020, com cautelar concedida em 2021. E também foram feitas 8 sustentações orais. Já o voto do relator está previsto para a sessão da semana subsequente (8/OUT); seguindo salutar procedimento adotado em anos recentes pelo STF, na linha da Suprema Corte americana: prever defasagem temporal entre as sustentações orais (das partes credenciadas) e o voto do relator (posteriormente, dos demais ministros) para viabilizar, a estes, mais tempo para levarem em consideração, em seus votos, o ponderado pelo relator e os advogados sustentantes. Na expectativa de que as sustentações orais não sejam, tão somente, pro forma.
ADI - decisão formal: no mérito, discute-se a possibilidade de serem alterados limites de parques por meio de medida provisória; como foi este o caso (MP nº 758/16). Nesse sentido, p.ex, o representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, Ricardo Terena, invocou o art. 225, §1º, inciso III, da Constituição Federal, e o precedente da ADI nº 4.717/18. Como argumento agravante, o fato de a Lei aprovada ter “desafetado“ (excluído) 862 hectares de área da unidade de conservação, previstos na MP; ainda que tenha “ampliado os limites do parque em sua porção sudoeste, com inclusão de área de aproximadamente 51.000 hectares” (quase 60 vezes maior).
A parte autora da nova postulação (dentro da mesma ADI), ao final, requer “A ampliação da medida cautelar com a suspensão de todo procedimento de licenciamento ambiental da EF-170 (em toda a administração pública federal) e da proposta de concessão em tramitação no MT e seus órgãos vinculados (ANTT e INFRA S.A), incluindo a realização de Leilão da Ferrogrão em 2025”. Na prática, se deferida, significaria a paralização total das ações nas diversas frentes; não é?
Implantação da ferrovia: no mérito, desde que surgiu o projeto em 2012, confrontam-se duas visões; dois conjuntos de argumentos bastante distintos:
Os que defendem a implantação da FG destacam os impactos positivos do empreendimento; como o sintetiza o Secretário Executivo do MT, George Santoro, em recente artigo, tomando como referência a 5ª versão do EVTEA (AGO/24): a agregação de capacidade de transporte de 70 Mt/ano à logística do Arco Norte, além de redução média de 20% no frete (o que contribuiria para aumentar a competitividade das exportações brasileiras). Mas, também, impactos positivos ambientais e sociais: 3,4 Mt/ano de emissões evitadas de CO2 equivalentes, “Valor Social Presente Líquido” de mais de R$ 60 bilhões, e R$ 800 milhões reservados para medidas socioambientais mitigadoras/compensatórias.
Já impactos negativos da redução do Parque (aprovada pela Lei em tela), associados à implantação da FG, são apontados por ONGs ambientalistas e lideranças indígenas, acompanhadas pela MPF e pelo PSOL; a saber: “ameaça a biodiversidade, fragiliza a política de conservação e pode incentivar desmatamento e grilagem de terras”. Mais especificamente, segundo Raphael Sodré Cittadinho, advogado do PSOL, “a ferrovia ameaça diretamente povos indígenas, comunidades locais e espécies endêmicas da região”, acrescentando que “pelo menos 14 terras indígenas e dezenas de comunidades podem ser impactadas, além de 5 espécies de peixes encontrados somente na região”. Já para a APIB, a FG “afetaria diretamente seis terras indígenas, 17 unidades de conservação e três povos isolados, além de gerar impactos cumulativos em toda a bacia do Tapajós, atingindo também quilombolas, ribeirinhos, pescadores e extrativistas”.
Apontam, também, questões técnicas específicas sobre as quais, até descontraidamente, “trocaram figurinhas” o relator e o advogado do Instituto Sócio-Ambiental Flora Nativa - ISAF, Marcos André Bruxel Saes: se trem sobe morro ou não (sic!), se faz curva ou não, se é factível a implantação da FG dentro da faixa de domínio da BR-163; p.ex. Tais questões, ainda que curiais para os ferroviaristas, não podem ficar sem respostas em um processo com essa importância e repercussão. Mas claro, não se imagina que seja objeto de decisão do STF: caberá ao poder concedente a comprovação delas, ao longo do processo de licenciamento e na apresentação da modelagem a potenciais investidores!
Chamou atenção nessa primeira sessão, também, e vale registro, a intervenção do Min. Flávio Dino que, com um misto de surpresa e curiosidade, solicitou à representante do Instituo Kabu, Gladys Terezinha Reis do Nascimento, confirmação da informação, anteriormente fornecida pelo representante da CNA, Rodrigo de Oliveira Kaufmann, de que a “ferrovia se aproxima de terras indígenas apenas da ordem de 5,8 km, e em áreas urbanas”. Tal informação, se confirmada, SMJ, alteraria sobremaneira o cenário de impactos negativos veiculados.
Os argumentos estão postos à mesa (talvez como em poucos outros empreendimentos infraestruturais). Um volume expressivo de dados e informações também. O que e como decidirá o STF? Shakespearianamente, “eis a questão”!
Nessa decisão, provavelmente a primeira de uma série, imagina-se que o STF trate especificamente da questão da constitucionalidade da Lei, E, se for além, talvez recomende alguns condicionantes/diretrizes para balizarem o desenvolvimento do projeto, a modelagem e, eventualmente, também o licenciamento ambiental do empreendimento - este a ser conduzido pelo IBAMA.
Uma boa notícia para o desenvolvimento sustentável
A boa notícia deste primeiro dia de julgamento é que as visões, os argumentos até então aparentemente inconciliáveis dos dois polos, exibiram alguma flexibilização – não reverberando o Fla X Flu tão comum em nossos dias: por um lado, visando minimizar os impactos negativos, o MT e o promotor do projeto se esmeraram nas análises e ajustes do traçado quando da elaboração do 5º EVTEA. Por outro, os que arguem a inconstitucionalidade da Lei, e os riscos decorrentes do empreendimento, não se furtaram a explicitar o reconhecimento das virtudes, da relevância e da possibilidade de implantação da FG. Ainda que condicionadamente! P.ex:
A AGU mudou seu entendimento anterior, para passar a ver a Lei, agora, como inconstitucional - evidência de que o direito não é, mesmo, uma “ciência exata”! Porém seu advogado, Antônio Marinho Rocha Neto, fez questão de registrar na sua sustentação: “... o reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei nº 13.452/17 não implica em posicionamento institucional contrário ao projeto de implantação da Ferrogrão. Desde que observados os requisitos legais e ambientais aplicáveis, o empreendimento poderá trazer avanço logístico para o país, com potencial de geração de empregos e ampliação da capacidade de transporte e competitividade no escoamento da produção agrícola pelo arco norte”. Mais adiante: “... a consolidação da Ferrogrão poderá reduzir o tráfego de caminhões na BR-163, com efeitos positivos sobre a malha rodoviária e sobre o meio ambiente, mediante mitigação de emissões de gases de efeito estufa, alinhando-se, portanto, aos objetivos de desenvolvimento sustentável”.
A Ministra Marina Silva, até então vista por alguns como adversária contumaz do projeto, em recente entrevista não descartou a implantação da FG. Esclareceu que “o licenciamento ambiental da obra será analisado tecnicamente, e não politicamente”. E lembrou o caso da linha de transmissão Tucuruí-Macapá-Manaus (“linhão de Tucuruí”): atribuiu a demora no licenciamento... a “descumprimentos de condições estipuladas pelos órgãos ambientais”. E concluiu: “a obra foi licenciada quando se cumpriu o dever de casa”.
Para além da discussão da constitucionalidade da Lei, a questão, então, passaria a ser identificar e tratar objetivamente “os princípios legais e ambientais aplicáveis” (na visão e no condicionante mencionado pela AGU), e o “dever de casa” (na visão e condicionante da Ministra). Isso significaria, SMJ, deslocar a discussão da FG da órbita político-ideológica e submetê-la ao rito do licenciamento ambiental como qualquer outro empreendimento infraestrutural; certo?
A OIT-169 vem sendo utilizada, rotineiramente, como fundamento na arguição da FG. Porém, na verdade, tal licenciamento ambiental deverá ser conduzido sob normas usuais para tanto. Evitando-se “contaminar” a discussão com a introdução de mais uma polêmica (a da recentíssima Lei nº 15.190/25, sancionada com 63 vetos ainda não votados!), fiquemos com os instrumentos consolidados há várias décadas – são adequados e suficientes. A saber: Lei nº 6.938/81, vigente, que estabelece a “Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação”; e a Resolução CONAMA nº 01/86 (modificada 3 vezes, a última das quais pela Resolução CONAMA nº 237/97); normas a serem seguidas nos processos de licenciamento ambiental no País.
Sob essas balizas, p.ex, os impactos negativos da FG precisarão ser examinados sob as dimensões ambiental, econômica e social (Lei nº 6.938/81, art. 4º, I; CONAMA 1/86 – Art. 6º – l e ll), e cotejados, conjuntamente, com os impactos positivos, também sob as 3 dimensões, de forma integrada, como em um “balanço” (balanço contábil!).
Para aumentar a chance de êxito contribuiriam, sobremaneira, ajustes conceituais e funcionais no sentido de passar a tratar o projeto como um “corredor de desenvolvimento”, conceito difundido pelas agências multilaterais (como o Banco Mundial, p.ex), ao invés de “apenas” uma ferrovia.
Também levando-se em consideração não apenas os legítimos direitos e interesses dos “povos originários”, mas também dos cerca de 750.000 brasileiros que hoje vivem nos municípios lindeiros do traçado da FG: muitos deles migraram de outras regiões do País incentivados pela/para a implantação da Transamazônica, há 50 anos; outros devem ter migrado há 70, 100 anos quando do “Ciclo da Borracha”. Mas certamente há também aqueles com antepassados que chegaram à região em meados do Século XIX, quando Itaituba ainda era a vila “Brasília Legal”; e/ou dos europeus que ali chegaram em meados do Século XVII. Brasileiros que, com justa razão, “não querem, apenas, ver o trem passar e nos dar adeusinho....” (como muitos verbalizaram nas audiências públicas de 2017), mas querem também se beneficiar pela implantação da FG; um corredor estruturante.
Ademais, também deverão ser cotejadas as alternativas de implantar-se versus não se implantar o empreendimento (CONAMA 1/86 – Art. 5° - I ; Art. 9º – V); procedimento previsto na lei e nas normas, mas ao qual é dada importância secundária. A propósito, há um benchmarking a respeito: a Betuwe Line, ferrovia que liga o Porto de Rotterdam ao coração da malha ferroviária europeia. Para que as resistências à sua implantação (inaugurada em 2007) fossem superadas, foi necessário comprovar-se que os impactos negativos de sua não implantação fossem superiores aos da sua implantação... algo mais ou menos na linha algébrica do “menos-com-menos-dá-mais”!!
Seriam esses os marcos legais e normativos de que fala a AGU? E a tecnicidade a que se refere a Min. Marina Silva?
Last but not least!
Sendo a FG bem-sucedida no julgamento da constitucionalidade da Lei, recebendo a Licença Prévia – LP ambiental do IBAMA na sequência, ela ainda teria mais uma complexa etapa a percorrer e superar: sua financiabilidade!
A implantação da ferrovia exigirá investimentos entre R$ 20 e 25 bilhões, desembolsados ao longo de um período de 5, 7, ou 10 anos; desafio este hercúleo para qualquer empresa, nacional ou estrangeira, mesmo tendo ela previsão de demanda expressiva. Esta não é uma descoberta recente, mas ficou empanada pela discussão da constitucionalidade da Lei. Ante a atual possibilidade, concreta, do STF eliminar os impedimentos, porém, o tema retorna à discussão; agora em caráter de urgência pois, sem uma clara definição da engenharia financeira da FG, não será possível levar sua concessão (ou PPP) a leilão ainda este ano, como deseja o governo.
Para tanto, o BNDES tem auxiliado o MT a construir soluções de financiabilidade para o projeto. Ainda não haveria nada de concreto, mas diversas alternativas estão à mesa sendo analisadas; conforme vem de ser noticiado: a) “Como também o problema não é exatamente a rentabilidade, mas o financiamento... o governo tem avaliado se é possível viabilizar uma cláusula de take-or-pay na concessão, estabelecendo uma espécie de garantia ao futuro operador”. b) Estruturas de garantia. c) Securitização, explicada em recente artigo do Sec. Leonardo Ribeiro. d) Aporte de recursos públicos para preencher o “gap” de viabilidade.
Esta última alternativa, entretanto, é vista com ressalvas dentro do próprio governo. É considerada não aplicável à FG sob o argumento de que “o projeto é muito vinculado ao interesse específico de setores privados” (no caso, o agronegócio e as tradings agrícolas): ué, a FIOL (I, II e III), a FICO (I e II), a EF-118 (RJ-ES), p.ex, com as quais a FG precisará “disputar” tais recursos, também não o são?
O julgamento do STF, que terá prosseguimento no próximo 8/OUT, é apenas uma das barreiras a ser transposta (espera-se que o seja!) para implantação da chamada Ferrogrão (um nome não muito feliz; técnica e mercadologicamente!).
Mas, como nos ensinou Lao Tse há possivelmente 2.600 anos, “uma longa viagem começa com um único passo”: todas essas vicissitudes podem acabar fazendo da meritória FG um “case” de sucesso de concepção, negociação-social, atuação institucional e implementação de projetos infraestruturais sustentáveis. Na prática, seria exemplo do tal “projeto de estado”, de que tanto falam?
Frederico Bussinger – Engenheiro, economista e consultor. Foi diretor do Metro/SP, Departamento Hidroviário (SP), e da Codesp. Também foi presidente da SPTrans, CPTM, Docas de São Sebastião e da Confea.
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